quinta-feira, 18 de março de 2010

Sacerdotes pedófilos: um pânico moral

Por Massimo Introvigne
Tradução de Maria José Figueiredo

Por que motivo se volta a falar de sacerdotes pedófilos, com acusações que remontam à Alemanha, a pessoas próximas do Papa, e talvez mesmo ao próprio Papa? A sociologia tem alguma coisa a dizer sobre isto, ou deve deixar o assunto exclusivamente ao cuidado dos jornalistas? Parece-me que a sociologia tem muito a dizer, e que não deve calar-se por receio de desagradar a algumas pessoas. Do ponto de vista do sociólogo, a actual discussão sobre os sacerdotes pedófilos constitui um exemplo típico de «pânico moral». O conceito surgiu nos anos 70 do século XX, para explicar a «hiperconstrução social» de que alguns problemas são objecto; mais precisamente, os pânicos morais foram definidos como problemas socialmente construídos, caracterizados por uma sistemática amplificação dos dados reais, quer a nível mediático, quer nas discussões políticas. Os pânicos morais têm ainda duas outras características: em primeiro lugar, problemas sociais que existem desde há várias décadas são reconstruídos, nas narrativas mediáticas e políticas, como problemas «novos», ou como problemas que foram objecto de um alegado crescimento, dramático e recente; em segundo lugar, a sua incidência é exagerada por estatísticas folclóricas que, embora não confirmadas por estudos académicos, são repetidas pelos meios de comunicação, podendo inspirar persistentes campanhas mediáticas. Por seu turno, Philip Jenkins sublinhou o papel dos «empresários morais», pessoas cujos interesses nem sempre são óbvios, na criação e na gestão destes pânicos. Os pânicos morais não fazem bem a ninguém; distorcem a percepção dos problemas, comprometendo a eficácia das medidas destinadas a resolvê-los. A uma análise mal feita não pode nunca deixar de se seguir uma intervenção mal feita.
Sejamos claros: na origem dos pânicos morais estão condições objectivas e perigos reais; os problemas não são inventados, as suas dimensões estatísticas é que são exageradas. Numa série de interessantes estudos, Philip Jenkins mostrou que a questão dos sacerdotes pedófilos é talvez o exemplo mais típico de pânico moral; com efeito, estão aqui presentes os dois elementos característicos desta situação: um dado real de partida, e um exagero deste dado por obra de ambíguos «empresários morais».Comecemos pelo dado real de partida. Há sacerdotes pedófilos. Alguns casos, repugnantes e perturbadores, foram alvo de condenações peremptórias, e os próprios acusados nunca se declararam inocentes. Estes casos – passados nos Estados Unidos, na Irlanda, na Austrália – explicam as severas palavras proferidas pelo Papa, bem como o pedido de perdão que dirigiu às vítimas. Mesmo que se tratasse apenas de dois casos – ou de um só –, seriam sempre demais; contudo, a partir do momento em que não basta pedir perdão – por muito nobre e oportuna que tal atitude seja –, sendo preciso evitar que os casos se repitam, não é indiferente saber se foram dois, ou duzentos, ou vinte mil. Como também não é irrelevante saber se os casos são mais ou menos numerosos entre os sacerdotes e os religiosos católicos do que entre outras categorias de pessoas. Os sociólogos são muitas vezes acusados de trabalhar com a frieza dos números, esquecendo que, por detrás dos números, se encontram pessoas; acontece porém que, embora insuficientes, os números são necessários, porque são o fundamento de uma análise adequada.
Para se compreender como é que, a partir de um dado tragicamente real, se passou a um estado de pânico moral, é pois necessário perguntar quantos são os sacerdotes pedófilos. Os dados mais amplos sobre esta matéria foram recolhidos nos Estados Unidos onde, em 2004, a Conferência Episcopal encomendou um estudo independente ao John Jay College de Justiça Criminal da Universidade de Nova Iorque, que não é uma universidade católica e que é unanimemente reconhecida como a mais autorizada instituição académica americana em criminologia. De acordo com este estudo, entre 1950 e 2002, 4392 sacerdotes americanos (num total de 109.000) foram acusados de manter relações sexuais com menores; destes, pouco mais de uma centena foram condenados pelos tribunais civis. O reduzido número de condenações por parte do Estado deriva de vários factores. Em alguns casos, as vítimas – efectivas ou presumidas – acusaram sacerdotes que já tinham morrido, ou cujos alegados crimes já tinham prescrito; noutros casos, a acusação e a condenação canónica não corresponde à violação de nenhuma lei civil, como acontece, por exemplo, em diversos estados americanos em que o sacerdote tenha tido relações com uma – ou mesmo com um – menor com mais de dezasseis anos que tenha consentido no acto. Mas também houve muitos casos clamorosos de sacerdotes inocentes que foram acusados, casos que se multiplicaram na década de 1990, quando alguns escritórios de advogados perceberam que podiam arrancar indemnizações milionárias na base de simples suspeitas. Os apelos à «tolerância zero» justificam-se, mas também não deve haver tolerância relativamente à calúnia de sacerdotes inocentes. Acrescento que, relativamente aos Estados Unidos, os números não mudariam de forma significativa se lhes juntássemos o período de 2002 a 2010, porque o estudo do John Jay College já fazia notar o «notável declínio» do número de casos observado no ano 2000. As novas investigações foram muito poucas, e as condenações pouquíssimas, devido às rigorosas medidas introduzidas, quer pelos bispos americanos, quer pela Santa Sé.
O estudo do John Jay College afirma, como muitas vezes se lê, que 4% dos sacerdotes americanos são «pedófilos»? Nem pensar. De acordo com o referido estudo, 78,2% das acusações referem-se a menores que já ultrapassaram a puberdade. Ter relações sexuais com uma rapariga de dezassete anos não é certamente um acto de virtude, muito menos para um sacerdote; mas também não é um acto de pedofilia. Assim, os sacerdotes acusados de pedofilia efectiva nos Estados Unidos foram 958 em cinquenta e dois anos, ou seja, dezoito por ano; as condenações foram 54, ou seja, pouco mais de uma por ano.O número de condenações penais de sacerdotes e religiosos noutros países é semelhante ao dos Estados Unidos, ainda que não exista, relativamente a nenhum país, um estudo completo como o do John Jay College. Na Irlanda, são frequentemente citados relatórios governamentais, que definem como «endémica» a presença de abusos nos colégios e orfanatos (masculinos) geridos por algumas dioceses e ordens religiosas, e não há dúvida de que houve casos de gravíssimos abusos sexuais de menores neste país. Uma análise sistemática destes relatórios permite contudo perceber que muitas das acusações dizem respeito à utilização de meios correctivos excessivos ou violentos. O chamado Relatório Ryan, de 2009, que recorre a uma linguagem muito dura no que diz respeito à Igreja Católica, assinala, em 25.000 alunos de colégios, reformatórios e orfanatos, no período analisado, 253 acusações de abusos sexuais por parte de rapazes e 128 por parte de raparigas (e nem todas são atribuídas a sacerdotes, religiosos ou religiosas), de natureza e gravidade diversas, raramente referidas a crianças pré-púberes e que ainda mais raramente conduziram a condenações.
As polémicas das últimas semanas, relativas à Alemanha e à Áustria, expõem uma característica típica dos pânicos morais: apresentar como «novos» factos ocorridos há muitos anos ou, como em alguns casos, conhecidos parcialmente há mais trinta anos. O facto de eventos ocorridos em 1980 terem chegado à primeira página dos jornais apresentados como se tivessem acontecido ontem – e com particular insistência no que diz respeito à Bavária, a área geográfica de onde o Papa é originário –, e de deles resultarem violentas polémicas, com ataques concentrados, que todos os dias anunciam, em estilo gritante, novas «descobertas», mostra claramente que o pânico moral é promovido por «empresários morais» de forma organizada e sistemática. O caso que – de acordo com os títulos de alguns jornais – «envolve o Papa» é um caso de manual; refere-se a um episódio de abusos que teve lugar na Arquidiocese de Munique da Baviera e Freising, da qual era Arcebispo o actual Pontífice, e que remonta a 1980. O caso veio à luz em 1985 e foi julgado por um tribunal alemão em 1986, estabelecendo, entre outras coisas, que a decisão de instalar o sacerdote em questão na diocese não tinha sido tomada pelo Cardeal Ratzinger, nem era sequer do seu conhecimento, circunstância que não é propriamente de estranhar numa diocese grande, com uma burocracia complexa. A verdadeira questão deve ser, pois: o que leva um jornal alemão a decidir recuperar o caso, e trazê-lo à primeira página vinte e quatro anos depois?
Uma pergunta desagradável – porque o simples facto de a colocar parece uma atitude defensiva, e também não consola as vítimas –, mas importante, é a de saber se um sacerdote católico corre, pelo facto de o ser, mais riscos de vir a ser pedófilo ou de abusar sexualmente de menores do que a maioria da população, duas situações que, como se viu, não são idênticas, porque abusar de uma rapariga de dezasseis anos não é ser pedófilo. É fundamental responder a esta pergunta, para descobrir as causas do fenómeno, e portanto para poder evitá-lo. De acordo com os estudos de Philip Jenkins, comparando a Igreja Católica dos Estados Unidos com as principais denominações protestantes, a presença de pedófilos é, dependendo das denominações, duas a dez vezes superior entre os pastores protestantes. A questão é relevante, porque mostra que o problema não é o celibato, dado que, na sua maioria, os pastores protestantes são casados. No mesmo período em que uma centena de sacerdotes católicos eram condenados por abusos sexuais de menores, o número de professores de educação física e de treinadores de equipas desportivas jovens, também quase todos casados, considerados culpados do mesmo delito nos tribunais americanos atingia os seis mil. Os exemplos podem multiplicar-se, e não só nos Estados Unidos. E o principal dado a ter em conta, de acordo com os relatórios periódicos do governo americano, é o de que dois terços dos abusos sexuais a menores não são feitos por estranhos, ou por educadores – incluindo os sacerdotes católicos e os pastores protestantes –, mas por membros da família: padrastos, tios, primos, irmãos e pelos próprios pais. E existem dados semelhantes relativamente a muitos outros países.
E há um dado ainda mais significativo, mesmo que politicamente incorrecto: 80% dos pedófilos são homossexuais, são homens que abusam de outros homens. E – voltando a citar Philip Jenkins – 90% dos sacerdotes católicos condenados por abusos sexuais de menores e pedofilia são homossexuais. Se a Igreja Católica tem efectivamente um problema, não é o do celibato, mas o de uma certa tolerância da homossexualidade nos seminários, que teve particular incidência nos anos 70, a época em que foi ordenada a grande maioria dos sacerdotes que foram posteriormente condenados por abusos. Um problema que Bento XVI está a corrigir com todo o vigor. De forma mais geral, o regresso à moral, à disciplina ascética, à meditação sobre a verdadeira e grandiosa natureza do sacerdócio, são os melhores antídotos contra a verdadeira tragédia que é a pedofilia; e o Ano Sacerdotal também deve ter esse objectivo.
Relativamente a 2006 – altura em a BBC emitiu o documentário de Colm O’Gorman, deputado irlandês e activista homossexual – e a 2007 – altura em que Santoro apresentou a respectiva versão italiana em Annozero –, não há, na realidade, grandes novidades, à excepção de uma crescente severidade e vigilância por parte da Igreja. Os casos dolorosos dos quais se tem falado nas últimas semanas não são todos inventados, mas sucederam há vinte ou trinta anos.
Ou talvez haja uma novidade. Como se explica esta recuperação, em 2010, de casos antigos e muitos deles já conhecidos, ao ritmo de um por dia, atacando de forma sempre mais directa o Papa, um ataque aliás paradoxal, tendo em consideração a enorme severidade, primeiro do Cardeal Ratzinger, e depois de Bento XVI, relativamente a este tema? Os «empresários morais» que organizam o pânico têm objectivos específicos, objectivos esses que se vão tornando cada vez mais claros, e que não são a protecção das crianças. A leitura de certos artigos permite compreender que – na véspera de escolhas políticas, jurídicas e mesmo eleitorais que, um pouco por toda a Europa e pelo mundo, põem em questão a administração da pílula RU486, a eutanásia, o reconhecimento das uniões homossexuais, temas em que a voz da Igreja e do Papa é quase a única que se ergue a defender a vida e a família – poderosos grupos de pressão se esforçam por desqualificar preventivamente esta voz com a acusação mais infamante, que é também, hoje em dia, a mais fácil de fazer: a acusação de favorecer ou tolerar a pedofilia. Estes grupos de pressão mais ou menos maçónicos são uma prova do sinistro poder da tecnocracia, evocado pelo mesmo Bento XVI na encíclica Caritas in Veritate e denunciado por João Paulo II na mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1985 (de 08.12.1984), quando se referia aos «desígnios ocultos», a par de outros «abertamente propagandeados», «com vista a subjugar os povos a regimes em que Deus não conta».
Vivemos realmente numa hora de trevas, que traz à mente a profecia de um grande pensador católico do século XIX, o piemontês Emiliano Avogadro della Motta (1798-1865), que afirmava que das ruínas provocadas pelas ideologias laicistas nasceria uma verdadeira «demonolatria», que se manifestaria de modo especial no ataque à família e à verdadeira noção do matrimónio. Restabelecer a verdade sociológica sobre os pânicos morais relativamente aos sacerdotes e à pedofilia não permitirá travar este grupo de pressão, mas poderá constituir, pelo menos, uma pequena e devida homenagem à grandeza de um Pontífice e de uma Igreja feridos e caluniados porque se recusam a calar-se nas matérias que dizem respeito à vida e à família.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Bom Governo.

“The care of human life and happiness, and not their destruction, is the first and only object of good government”.

Thomas Jefferson

quarta-feira, 3 de março de 2010

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

domingo, 21 de fevereiro de 2010

"Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?"


" Quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?"

Marcus Tullius Cicero

No ano de 63 A.C. Roma não era um Império. Era uma República .


"Na República Romana o mais alto cargo que um Senador ou um político podia almejar era o de Cônsul.

Neste ano de 63 A.C. um dos dois consules eleitos pelo Senado era um homem chamado Marcus Tullius Cicero, que passou à posteridade simplesmente como Cícero, o maior de todos os oradores romanos, e o mais respeitado jurista da República. Foi também grande estadista, filósofo e político.

Ocorre que um nobre cuja família havia empobrecido e perdido a influência chamado Lucius Sergius Catilina ambicionava também o cargo de Cônsul. Para tentar conseguir seus fins, liderou uma conspiração a fim de executar um golpe de estado, para que ele próprio pudesse alcançar o cargo de cônsul. Mas além de corrupto era indiscreto, e sua conspiração logo ficou conhecida de todos.

Cícero então pronunciou no Senado uma série de discursos, as famosas "Catilinárias", denunciando Catilina, e a Primeira Catilinária começa com uma frase famosa:

"Quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?"
"Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?"

Em consequência dos discursos de Cícero em defesa da República, Catilina teve de abandonar Roma para nunca mais voltar, exilando-se na Grécia. "


Retirado deste Blog

A obras em Portugal encontra-se à venda em edição da Editora Edições 70 , Ano: 2006

Para quem gosta de Latim, poderá entreter-se aqui.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Politics

"Politics is the business of getting power and privilege without possessing merit"

P J O'Rourke

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Inimigos

You have enemies? Good.
That means you've stood up for something, sometime in your life.

Tem inimigos? Isso é bom. Quer dizer que, alguma vez na vida, se empenhou na defesa de qualquer coisa.

Winston Churchill

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Um Estado sem justiça não é senão um enorme bando de criminosos. 3

Sobre o excerto de St. Agostinho, anota Pacheco Pereira no seu Blog "Abrupto" o seguinte texto, que pode ser lido AQUI.

"O texto de Santo Agostinho fala geralmente de todos os reinos, em que são ordinárias semelhantes opressões e injustiças, e diz que, entre os tais reinos e as covas dos ladrões — a que o santo chama latrocínios — só há uma diferença. E qual é? Que os reinos são latrocínios, ou ladroeiras grandes, e os latrocínios, ou ladroeiras, são reinos pequenos: Sublata justitia, quid sunt regna, nisi magna latrocinia? Quia et latrocinia quid sunt, nisi parva regna? É o que disse o outro pirata a Alexandre Magno. Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim. — Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? — Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Séneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem et piratam, quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o Rei de Macedónia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome. "

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Um Estado sem justiça não é senão um enorme bando de criminosos. 2


"Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? "

[Sem a justiça, que são os governos, senão grandes rapinagens?]



«1.4. A quarta modalidade de corrupção da paz foi já acima mencionada, e depende estritamente das precedentes. Pode suceder que um Estado caia nas mãos de grupos de poder que elevem o arbítrio a lei, matem a justiça na raiz e assim criem a seu modo uma "paz" que na realidade seja domínio da violência. Com os meios do moderno domínio das massas, esse Estado pode produzir completa submissão e portanto uma aparência de ordem e tranquilidade, enquanto os homens 'que em consciência não aceitem vergar-se se vejam atirados para as prisões, ou forçados ao exílio, ou eliminados.
A este propósito notou Sto. Agostinho que um Estado sem justiça não é senão um enorme bando de criminosos. O Reich de Hitler foi um "Estado de rapina" deste género, e também o Governo de Estaline funcionou como bando de ladrões. Quem olhar de fora, verá aí a paz - mas a paz dos cemitérios. O que é trágico é que, num regime de completa tirania, deixa de ser possível qualquer guerra de libertação, e até o domínio da violência se pode tranquilamente estabelecer como vitória da paz.(...)
2. O núcleo dos problemas de hoje tornou-se manifesto quando descrevemos o terceiro aspecto da crise actual. Também nesse ponto se pode perceber como é estreita a relação entre religião, paz e justiça.De facto, vimos que, hoje, a paz se desfaz nos povos porque falta uma harmonia de vistas acerca da natureza essencial do direito e da injustiça. O que dá coesão e paz a uma sociedade é o direito. Que a paz entre os povos tenha sido continuamente desfeita pela guerra é (também) consequência da ausência de um eficaz Direito internacional - que não só garanta o ordenamento de uma sociedade, como seja colectivamente reconhecido entre os povos como parâmetro vinculativo - ao qual se obedeça, quer nos seja favorável, quer desfavorável.Quando, porém, o Direito deixa de ter qualquer conteúdo comummente reconhecido, perde vigor. Simultaneamente, dilui-se a diferença entre legítimo poder coercivo e violência ilegal. Consequentemente, os portadores do poder legítimo acabam por se tornar "polícias" e os da violência, "campeões" da liberdade. Perdida que seja a capacidade de revelar a sua autêntica fisionomia, o Direito já não se distingue do mero arbítrio, e só permanece como violência: homo homini lupus.É por isso que a questão da paz é praticamente idêntica à da justiça, e a verdadeira interrogação acerca da sobrevivência da humanidade consiste em procurar os fundamentos e conteúdos essenciais, não manipuláveis, do Direito. Onde e como, porém, se pode achar resposta? Ou melhor, dando volta à pergunta: Porque se perdeu a nossos olhos a evidência da distinção entre justo e injusto? Porque passaram a ser indiscerníveis?Tais interrogações obrigam-nos a indagar das formas essenciais de fundação e configuração do Direito no mundo moderno. Também esta investigação não pode, como é natural e já antes indicámos, tomar a forma de análise histórica; terá de se limitar à tentativa de realçar alguns traços característicos. Parece-me ver três.

2.1. Em primeiro lugar, a célebre afirmação de Tomás Hobbes: Auctoritas, non veritasfacit legem . A pergunta socrática acerca do que, em realidade, através de todas as tradições e do direito positivo, em si mesmo e segundo a íntima verdade das coisas, são afinal o direito ou o abuso, é posta de parte, como não funcional para os fins agora perseguidos. A norma acha fundamentação, não numa' realidade efectiva, racionalmente discernível, do justo e do injusto, mas sim na autoridade de quem está em situação de a impor. Tem origem numa efectiva posição, e em mais nada. O seu fundamento interno deriva do poder de estatuir, não da verdade do ser. ste princípio pôde começar por ser favorável ao processo de autonomização do poder político em face dos diversos ordenamentos hierárquicos da Idade Média. Teve capacidade para lançar os fundamentos de legitimação da monarquia absoluta. Mas pôde também tornar-se o teorema fundamental do positivismo jurídico, tal como este se pôde afirmar progressivamente a partir do século XIX. As consequências são de largo alcance: desde agora, certo governo pode proclamar "direito" aquilo que o governo seguinte considerará "abuso". ntretanto, na consciência de um largo sector político hoje com assento parlamentar - portanto, da auctoritas legislativa - , deu-se uma significativa mudança de mentalidade. Veio a acreditar-se na ideia de que o Direito deve recolher e converter em normas os juízos de valor efectivamente presentes na sociedade. E quando, dessa maneira, a opinião da maioria passe a ser fonte de Direito em sentido específico e medida interna da auctoritas", em nada diminuirá o carácter paradoxal da questão. Com efeito, aquele que hoje é condenado pode considerar-se pioneiro do Direito de amanhã, e por isso mesmo sentir-se autorizado a aplicar todos os meios para ajudar o futuro a estar do seu lado, uma vez que ele é arauto do futuro.Se a verdade é assim inacessível, como se pressupõe, não há na realidade diferença alguma entre força legítima e violência arbitrária, a não ser a imposição do grupo nesse momento mais forte: o domínio da maioria.


2.2. A este conceito de Direito corresponde uma ideia da paz que se poderia exprimir na fórmula: utilitas, non ventasfacir pacem. tais modos de pensar, que se podem encontrar desenvolvidos especialmente em Adam Smith, deu também lugar Immanuel Kant no seu texto sobre a paz perpétua: .É o espírito do comércio que não pode conviver com a guerra e que, tarde ou cedo, se impõe a todos os povos. Porque a verdade é que o poder financeiro pareceria ser, com toda a probabilidade, o mais eficaz dos poderes (meios) que o Poder estatal tem à sua disposição, pelo que os Estados se vêem solicitados (...) a incrementar a paz como bem precioso, e a afastar a guerra, onde quer que pelo mundo ela ameace rebentar, por meio de negociações, tal como se para esse fim estivessem unidos em perpétua aliança..Quer dizer: trata-se de fazer do egoísmo, considerado o mais forte e o mais firme poder de que o homem dispõe - e ao mesmo tempo a matriz dos conflitos -, o instrumento peculiar para conseguir a paz, visto que, na perspectiva do egoísmo, a paz é mais vantajosa do que a guerra. Uma política "realista" há-de seguramente utilizar este ponto de vista, e nele achará um factor adequado a restabelecer a paz.Que isto não é bastante para edificar a paz perpétua é o que mostrou abundantemente a época que veio depois de Kant.



2.3. Ambos os referidos motivos, auctaritas e utilitas, fazem parte da era pós-metafísica procuram fundamentar Direito e paz numa situação em que a incognoscibilidade do verdadeiro e a incapacidade do homem para o bem parecem ter-se tornado certeza indestrutível. A estas duas teses pós-metafísicas, de manifesta eficácia política, se contrapõe, porém, uma forte corrente metafísica, que mesmo hoje ganha novo e imponente vigor. Refiro-me ao tríptico dos direitos fundamentais (vida, liberdade, propriedade) descritos e justificados por John Locke no seu Segundo Tratado sobre o Governo (1690). Como pano de fundo estão a Magna Charta, o Bill of Rights e por último a tradição jusnaturalista. De modo bastante claro vemos aqui defendida a precedência do direito das pessoas sobre as decisões positivas da actividade jurídica do Estado.Em Locke, a formulação da doutrina dos direitos do Homem é claramente voltada contra o poder estatal; tem um sentido revolucionário. Sobre esta base não é para admirar que o iluminismo, muito antes de Marx, haja desenvolvido no seu seio também uma linha de tendência revolucionária, e que a tradicional teoria da guerra justa se tenha então transformado numa doutrina da luta pela paz perpétua, que devia ser praticada nos moldes de uma guerra civil universal.Também a ambivalência da doutrina dos direitos do Homem tem a ver com isto. Onde o conceito de liberdade for hipertrofiado e o Estado concebido essencialmente como inimigo, fica destruída a aptidão para a paz.No seu núcleo positivo, porém, a ideia dos direitos humanos é - continua a ser - uma barreira de protecção contra o positivismo e um guia para a verdade. Há nela qualquer coisa de justo, e é isso que na verdade deve ser tido como obrigatório, por derivar da nossa natureza comum.Entretanto, a tentativa de descobrir as raízes da hodierna crise da justiça e da paz tornou-se um apelo ao que lhe possa dar remédio. O Direito só pode ser eficaz força pacificadora quando o seu valor não está nas possas mãos. É certo que o Direito é instituído por nós; mas não criado. Por outras palavras : sem transcendência, não há fundamento para o Direito (...) "



Joseph Ratzinger, "A Igreja e a nova Europa", ed Verbo, 1994, Pag 34-39

Um Estado sem justiça não é senão um enorme bando de criminosos.

"Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? quia et latrocinia quid sunt nisi parva regna?"
Stº Agostinho, De civitate Dei, IV, 4, C.CHR, XLVII, 101.
O texto de Santo Agostinho fala geralmente de todos os reinos, em que são ordinárias semelhantes opressões e injustiças, e diz que, entre os tais reinos e as covas dos ladrões — a que o santo chama latrocínios — só há uma diferença. E qual é? Que os reinos são latrocínios, ou ladroeiras grandes, e os latrocínios, ou ladroeiras, são reinos pequenos.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Um amigo

O amigo que consegue estar calado connosco num momento de confusão ou desespero, que pode ficar ao pé de nós numa hora de desgosto e pesar, que tolera não saber… não curar…é este o amigo que verdadeiramente quer saber de nós



Henri Nouwen

(1932-1996)

Padre e escritor
Ser derrotado é, na maior parte das vezes, uma condição temporária; desistir é o que a torna permanente

Marilyn vos Savant

Jornalista americana

(1946-…)

Corruptissima republica plurimae leges.

Corruptissima republica plurimae leges

A expressão é de Cornelius Tacitus (Anais, 3, 27, 3)cuja tradução significa que "Estado corrupto, múltiplas leis".

Montesquieu retoma esta leitura, na sua obra "O Espírito das Leis", afirmando quando que as leis inúteis enfraquecem as leis necessárias.

Uma visão mais branda que Tacito. Penso que a visão de Tácito é mais acertada, para alem de inuteis e prejudiciais, a proliferação legislativa favorece e incentiva a corrupção.

Tacito deu uma licção, testada e confirmada ao longo dos tempos.