quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Um Estado sem justiça não é senão um enorme bando de criminosos. 2


"Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? "

[Sem a justiça, que são os governos, senão grandes rapinagens?]



«1.4. A quarta modalidade de corrupção da paz foi já acima mencionada, e depende estritamente das precedentes. Pode suceder que um Estado caia nas mãos de grupos de poder que elevem o arbítrio a lei, matem a justiça na raiz e assim criem a seu modo uma "paz" que na realidade seja domínio da violência. Com os meios do moderno domínio das massas, esse Estado pode produzir completa submissão e portanto uma aparência de ordem e tranquilidade, enquanto os homens 'que em consciência não aceitem vergar-se se vejam atirados para as prisões, ou forçados ao exílio, ou eliminados.
A este propósito notou Sto. Agostinho que um Estado sem justiça não é senão um enorme bando de criminosos. O Reich de Hitler foi um "Estado de rapina" deste género, e também o Governo de Estaline funcionou como bando de ladrões. Quem olhar de fora, verá aí a paz - mas a paz dos cemitérios. O que é trágico é que, num regime de completa tirania, deixa de ser possível qualquer guerra de libertação, e até o domínio da violência se pode tranquilamente estabelecer como vitória da paz.(...)
2. O núcleo dos problemas de hoje tornou-se manifesto quando descrevemos o terceiro aspecto da crise actual. Também nesse ponto se pode perceber como é estreita a relação entre religião, paz e justiça.De facto, vimos que, hoje, a paz se desfaz nos povos porque falta uma harmonia de vistas acerca da natureza essencial do direito e da injustiça. O que dá coesão e paz a uma sociedade é o direito. Que a paz entre os povos tenha sido continuamente desfeita pela guerra é (também) consequência da ausência de um eficaz Direito internacional - que não só garanta o ordenamento de uma sociedade, como seja colectivamente reconhecido entre os povos como parâmetro vinculativo - ao qual se obedeça, quer nos seja favorável, quer desfavorável.Quando, porém, o Direito deixa de ter qualquer conteúdo comummente reconhecido, perde vigor. Simultaneamente, dilui-se a diferença entre legítimo poder coercivo e violência ilegal. Consequentemente, os portadores do poder legítimo acabam por se tornar "polícias" e os da violência, "campeões" da liberdade. Perdida que seja a capacidade de revelar a sua autêntica fisionomia, o Direito já não se distingue do mero arbítrio, e só permanece como violência: homo homini lupus.É por isso que a questão da paz é praticamente idêntica à da justiça, e a verdadeira interrogação acerca da sobrevivência da humanidade consiste em procurar os fundamentos e conteúdos essenciais, não manipuláveis, do Direito. Onde e como, porém, se pode achar resposta? Ou melhor, dando volta à pergunta: Porque se perdeu a nossos olhos a evidência da distinção entre justo e injusto? Porque passaram a ser indiscerníveis?Tais interrogações obrigam-nos a indagar das formas essenciais de fundação e configuração do Direito no mundo moderno. Também esta investigação não pode, como é natural e já antes indicámos, tomar a forma de análise histórica; terá de se limitar à tentativa de realçar alguns traços característicos. Parece-me ver três.

2.1. Em primeiro lugar, a célebre afirmação de Tomás Hobbes: Auctoritas, non veritasfacit legem . A pergunta socrática acerca do que, em realidade, através de todas as tradições e do direito positivo, em si mesmo e segundo a íntima verdade das coisas, são afinal o direito ou o abuso, é posta de parte, como não funcional para os fins agora perseguidos. A norma acha fundamentação, não numa' realidade efectiva, racionalmente discernível, do justo e do injusto, mas sim na autoridade de quem está em situação de a impor. Tem origem numa efectiva posição, e em mais nada. O seu fundamento interno deriva do poder de estatuir, não da verdade do ser. ste princípio pôde começar por ser favorável ao processo de autonomização do poder político em face dos diversos ordenamentos hierárquicos da Idade Média. Teve capacidade para lançar os fundamentos de legitimação da monarquia absoluta. Mas pôde também tornar-se o teorema fundamental do positivismo jurídico, tal como este se pôde afirmar progressivamente a partir do século XIX. As consequências são de largo alcance: desde agora, certo governo pode proclamar "direito" aquilo que o governo seguinte considerará "abuso". ntretanto, na consciência de um largo sector político hoje com assento parlamentar - portanto, da auctoritas legislativa - , deu-se uma significativa mudança de mentalidade. Veio a acreditar-se na ideia de que o Direito deve recolher e converter em normas os juízos de valor efectivamente presentes na sociedade. E quando, dessa maneira, a opinião da maioria passe a ser fonte de Direito em sentido específico e medida interna da auctoritas", em nada diminuirá o carácter paradoxal da questão. Com efeito, aquele que hoje é condenado pode considerar-se pioneiro do Direito de amanhã, e por isso mesmo sentir-se autorizado a aplicar todos os meios para ajudar o futuro a estar do seu lado, uma vez que ele é arauto do futuro.Se a verdade é assim inacessível, como se pressupõe, não há na realidade diferença alguma entre força legítima e violência arbitrária, a não ser a imposição do grupo nesse momento mais forte: o domínio da maioria.


2.2. A este conceito de Direito corresponde uma ideia da paz que se poderia exprimir na fórmula: utilitas, non ventasfacir pacem. tais modos de pensar, que se podem encontrar desenvolvidos especialmente em Adam Smith, deu também lugar Immanuel Kant no seu texto sobre a paz perpétua: .É o espírito do comércio que não pode conviver com a guerra e que, tarde ou cedo, se impõe a todos os povos. Porque a verdade é que o poder financeiro pareceria ser, com toda a probabilidade, o mais eficaz dos poderes (meios) que o Poder estatal tem à sua disposição, pelo que os Estados se vêem solicitados (...) a incrementar a paz como bem precioso, e a afastar a guerra, onde quer que pelo mundo ela ameace rebentar, por meio de negociações, tal como se para esse fim estivessem unidos em perpétua aliança..Quer dizer: trata-se de fazer do egoísmo, considerado o mais forte e o mais firme poder de que o homem dispõe - e ao mesmo tempo a matriz dos conflitos -, o instrumento peculiar para conseguir a paz, visto que, na perspectiva do egoísmo, a paz é mais vantajosa do que a guerra. Uma política "realista" há-de seguramente utilizar este ponto de vista, e nele achará um factor adequado a restabelecer a paz.Que isto não é bastante para edificar a paz perpétua é o que mostrou abundantemente a época que veio depois de Kant.



2.3. Ambos os referidos motivos, auctaritas e utilitas, fazem parte da era pós-metafísica procuram fundamentar Direito e paz numa situação em que a incognoscibilidade do verdadeiro e a incapacidade do homem para o bem parecem ter-se tornado certeza indestrutível. A estas duas teses pós-metafísicas, de manifesta eficácia política, se contrapõe, porém, uma forte corrente metafísica, que mesmo hoje ganha novo e imponente vigor. Refiro-me ao tríptico dos direitos fundamentais (vida, liberdade, propriedade) descritos e justificados por John Locke no seu Segundo Tratado sobre o Governo (1690). Como pano de fundo estão a Magna Charta, o Bill of Rights e por último a tradição jusnaturalista. De modo bastante claro vemos aqui defendida a precedência do direito das pessoas sobre as decisões positivas da actividade jurídica do Estado.Em Locke, a formulação da doutrina dos direitos do Homem é claramente voltada contra o poder estatal; tem um sentido revolucionário. Sobre esta base não é para admirar que o iluminismo, muito antes de Marx, haja desenvolvido no seu seio também uma linha de tendência revolucionária, e que a tradicional teoria da guerra justa se tenha então transformado numa doutrina da luta pela paz perpétua, que devia ser praticada nos moldes de uma guerra civil universal.Também a ambivalência da doutrina dos direitos do Homem tem a ver com isto. Onde o conceito de liberdade for hipertrofiado e o Estado concebido essencialmente como inimigo, fica destruída a aptidão para a paz.No seu núcleo positivo, porém, a ideia dos direitos humanos é - continua a ser - uma barreira de protecção contra o positivismo e um guia para a verdade. Há nela qualquer coisa de justo, e é isso que na verdade deve ser tido como obrigatório, por derivar da nossa natureza comum.Entretanto, a tentativa de descobrir as raízes da hodierna crise da justiça e da paz tornou-se um apelo ao que lhe possa dar remédio. O Direito só pode ser eficaz força pacificadora quando o seu valor não está nas possas mãos. É certo que o Direito é instituído por nós; mas não criado. Por outras palavras : sem transcendência, não há fundamento para o Direito (...) "



Joseph Ratzinger, "A Igreja e a nova Europa", ed Verbo, 1994, Pag 34-39

Sem comentários:

Enviar um comentário